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O papel da luta por moradia na conjuntura política do Distrito Federal e comunidades adjacentes

4 de agosto de 2010

A luta por moradia, um “problema” de todos

Ainda mal curadas as feridas de uma decepcionante Copa do Mundo, e esmiuçadas as tristes condições em que se dará o debate eleitoreiro e a dinâmica de nossas cidades nos meses que virão, nos voltamos novamente à realidade, ao dia dia de nossa população que, após um longo período de luta no início do ano, agora se vê sem horizonte, completamente desagregada, onde os desejos de transformação são aguçados novamente mas com interesses escusos, propagandísticos e eleitoreiros. É sabido que a força da transformação está no engajamento, na vontade de lutar e no comprometimento da população com as questões que lhes dizem respeito. Só assim a população de baixa renda obtém conquistas. Em alguns pontos, é mais simples lutar e as conquistas vêm de forma mais fácil. Em outros, como a questão da moradia, é muito difícil reverter a conjuntura política e atacar o que é justamente o tendão de Aquiles da política de governo há décadas no Planalto Central. Estas breves palavras que aqui se seguem buscam apontar um novo caminho para todos aqueles que anseiam um processo de transformação em nossa cidade. Não passa de uma pequena e simples introdução para um problema, cuja solução só pode ser percebida no frio dos acampamentos, nos gritos das marchas e no levantar de paredes que um dia serão o lar de uma família feliz.

O controle da terra como instrumento de poder dos sucessivos governos no DF

Brasília tem características únicas no que diz respeito à questão fundiária. Talvez seja um dos lugares onde mais se dá este fenômeno onde quem obtém o controle das terras, controla a cidade. Sucessivos governos utilizaram desta estratégia nas duas últimas décadas. No governo de Roriz, Luiz Estevão, Pedro Passos e etc, o controle da terra se deu por meio da grilagem, oferecendo lotes às populações do Norte e Nordeste, criando enormes bolsões de pobreza onde reina o abandono e, mesmo assim, uma lealdade quase inabalável a estes que ofereceram à população o tão distante sonho da moradia própria. Repetir esta façanha eleitoreira vem sendo a menina dos olhos de todo político do DF desde então.

A prática da grilagem nunca parou, e o vergonhoso braço corporativo desta classe de corruptos (Terracap) vem se esforçando ao máximo para que este processo nunca cesse. Atualmente, em uma tentativa de maquiar este fenômeno, eles oferecem bairros inteiros a determinados segmentos e categorias de trabalhadores de seu interesse, além de licitações fraudulentas, despejos de comunidades inteiras e o (des)controle corrupto da fiscalização, tornando esta gestão da Terracap a mais lucrativa desde a sua criação (1 Bilhão e 469 Milhões de reais de lucro desde 2007 até o início de 2010) e agravando criticamente a situação da população de baixa renda, que não tem acesso à moradia na cidade da especulação imobiliária.

Brasília, a Meca da Especulação

Utilizando de uma estratégia ainda mais prejudicial à população, a política que o Estado iniciou quando colocou Arruda e PaulOOctávio no Buriti elevou Brasília ao título de “Meca da Especulação Imobiliária”, onde uma quitinete de 80m² chega a custar meio milhão de reais no Setor Noroeste. O alinhamento com o neoliberalismo e o grande capital estrangeiro fez com que Brasília se transformasse em um grande canteiro de obras, a um custo ambiental que ainda é impossível de se medir, mas podemos comparar a Terracap, para os brasilienses, com a British Petroleum no Golfo do México, acabando com as nossas reservas de cerrado nativo, destruindo os locais de nascente e recarga hídrica, saturando a capacidade de abastecimento de água, tornando a locomoção e o direito à cidade insustentáveis, além da grande violência contra a cultura e a crença dos povos originários do cerrado e da população de baixa renda, que dele sobrevive.

Nem mesmo os programas federais são capazes de frear a especulação aqui, pelo contrário. O que foi percebido é que, após o surgimento do programa “Minha casa, minha vida”, o valor da moradia nas comunidades do entorno subiu entre 7 e 9 por cento. Ou seja, mais uma vez está claro que não existe um programa habitacional sério voltado a resolver o problema da moradia para a população de baixa renda. E neste cenário, que papel temos nós, enquanto lutadores sociais e pessoas comprometidas com a luta dos povos por sua libertação? Será que a nós bastaria que o “Minha casa, minha vida” tivesse melhor condições de financiamento e, quiçá algum mecanismo de controle dos preços? É importante termos claro que só a luta muda a vida, portanto, devemos compreender que para a população de baixa renda, a única opção que lhes resta é “Minha casa, minha LUTA”.

O fascismo para conter o motor da história

A polícia militar do DF é conhecida mundialmente pela truculência, pelo descontrole e os sucessivos desrespeitos aos direitos humanos da população, seja de baixa renda, seja de classe média indignada com a corrupção. Os fatos que correram o mundo da Batalha do Buriti, além de outros que se seguiram, são apenas mais uma amostra disso. Mas a luta nas comunidades economicamente mais pobres é ainda mais dura (vide: O Ato em Defesa da Cana do Reino, no Youtube). Em junho de 2009, a Via Estrutural foi fechada e a Vila Estrutural sitiada pela polícia, que cortou o fornecimento de energia e instaurou lei marcial na comunidade, com agressões, abusos e claras violações dos Direitos Humanos. Este sonho dantesco ocorreu pura e simplesmente pelo fato da população ter resolvido pôr-se de pé para reivindicar o seu direito inalienável a moradia digna e universal.

Embora estes exemplos de brutalidade assustem, sabemos que é só através de muita luta que teremos uma sociedade justa socialmente, portanto, é nosso dever apoiar as iniciativas que surjam neste sentido sempre que for necessário. Enquanto não compreendermos a questão da luta por moradia como um problema de todos, sempre estaremos sozinhos quando decidirmos clamar uma nova forma de fazer política, com prisão para os corruptos, ou uma cidade ecosustentável, ou o “direito à cidade”. O que devemos fazer é juntarmos todas estas demandas, transformando o DF e territórios adjacentes em uma região onde é respeitado o direito à moradia ambiental, com condições dignas de educação emancipadora, transporte digno, acesso à saúde universal, acesso à cultura e apoio a todas as formas de organização e empoderamento popular.

Novos horizontes

É chegado o momento da população da região central de Brasília aproveitar a oportunidade deste chamado para juntar-se à luta por moradia. O período eleitoral é extremamente desagregador, mas por todo o DF e entorno vão se desenvolvendo iniciativas no sentido de garantir moradia para a população de baixa-renda, através da luta não-institucional, não-cooptada, não-eleitoreira. Temos a oportunidade, através destas lutas nas comunidades, de transformar este período tão desagregador e pobre politicamente em um período de muita luta, onde as conquistas virão independente do seu título de eleitor, independente do quanto foi gasto em publicidade, ou quantos acordos políticos você consegue fazer pelo tamanho de sua base. A força da transformação está na mobilização popular, portanto, mãos à obra. A luta por moradia ainda tem muitos capítulos a serem escritos, entre os quais estes dias vindouros terão um papel determinante. Esperamos contar com a ajuda de todos vocês, trabalhadoras e trabalhadores, estudantes, cidadãos indignados, inquilinos de aluguel, moradores de puxadinhos, assentados, jovens com o sonho de constituir família, enfim, todas as pessoas comprometidas em fazer desta Terra a Pátria do ser humano.

Muita atenção aos próximos dias, que podem marcar o início de uma nova fase na luta social do DF.

Um forte abraço de luta.

Thiago Ávila

Militante do PSoL, pelo Coletivo Luta Vermelha, e membro da Assembléia Popular

Eduardo Galeano: A história do Haiti é a história do racismo na civilização ocidental

20 de janeiro de 2010

por Eduardo Galeano, em Resumen Latinoamericano, via Resistir.info

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.
Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:
– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Porto Príncipe, qual é o problema:
– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.
E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.
Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado… de artistas.
Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem “uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização”. Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: “Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses”.
O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: “O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro”.
Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: “Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos”. Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro “pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras”.

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.
A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.
Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade.
A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.